Um texto muito importante, escrito por ERIKA ALVES para um projeto Elas por Elas. Uma breve reflexão sobre o papel da mulher em meio ao patriarcado contemporâneo.

PERSPECTIVA HISTÓRICA

Misoginia é um termo oriundo do grego “miseó” (raiva e ódio) e “gyné” (feminino, mulher), usado para se referir a sentimentos de desprezo ou repulsa pelas mulheres.
Conforme estudos do historiador Leandro Karnal, a misoginia é o preconceito mais antigo, sólido, arraigado e definidor de todos. Aparecendo desde os textos bíblicos, aos grandes textos clássicos e sagrados, tendo marcado presença até na Atenas democrática e clássica.

O SILÊNCIO SOBRE O FEMININO

Ao analisar documentos históricos, textos e fontes antigas, dos poucos relatos que se tem acerca das mulheres, a maioria foram feitos sob a autoria de homens. A evidente parcialidade dos registros e a exclusão da perspectiva feminina são um alerta do quão fácil é apagar registros e contribuições de metade da população mundial ao longo dos tempos.

Assim, por vezes uma mulher ao tomar consciência de sua capacidade intelectual, vê-se diante da seguinte dúvida “Mas, se homens e mulheres tem a mesma capacidade intelectual, quais grandes cientistas, inventoras e artistas mulheres você conhece? Por que o número de exemplos é tão inferior ao masculino?”.
A escassez de contribuições, ou relatos provém de uma cultura, que, por muito tempo, inviabilizou o acesso das mulheres a educação, dificultou publicações de obras femininas com o pressuposto da autorização do marido e, muitas vezes, as obrigou a omitir seus feitos sob pseudônimos masculinos.

Nesse contexto, alerta a professora universitária Lola Aronovich:
“A história das mulheres é uma historia de exclusão, de apagamentos de sabotagens, de desvalorizações. Para se atacar a luta das mulheres, que historicamente leva o nome de feminismo é preciso que nosso protagonismo seja negado. É preciso fingir que nunca lutamos. Por isso é tão importante conhecer a nossa história.”
Os discursos contra a mulher, que insinuam inferioridade intelectual, histeria e instabilidade emocional, incapacidade, além do uso de expressões como “sexo frágil”, são muito antigos e dominaram em quase todas as sociedades, sendo excepcionais as situações em que uma mulher assume o poder.

A CONSTRUÇÃO DOS PAPÉIS

Os papéis sociais, de modo geral, referem-se a comportamentos que após serem reiterados tornam-se padrões a serem seguidos, os que fogem a regra sofrem retaliações, a fim de que se adequem. Esses papéis são cultivados em instituições como a família, religião, a escola e até mesmo nas leis.
Logo, antes de uma criança nascer, já há uma expectativa em relação a ela. De modo que, baseado no seu sexo, se escolhe um nome, adquirem-se roupas, e utensílios. Desde muito cedo, a estrutura social, tenta, através do sexo biológico (genitália), fundamentar um comportamento aceitável e um não aceitável na participação social.
Assim, ao se referir ao homem nas relações de gênero tem-se a expectativa da masculinidade, de forma que à mulher se atribui de forma simétrica, a feminilidade. Nesse sentido, Senkevics e Polidoro, destacam em seu ensaio “Gênero, sexualidade e ciência”, as características atribuídas a essas expectativas:

(…) a respeito do que entendemos por homem e mulher, uma série de adjetivações se permite possível: a agressividade, virilidade e insensibilidade dos homens ; a sentimentalidade, submissão e instabilidade emocional das mulheres; a preferência dos meninos em brincadeiras que simulam guerras, lutas e violência, permeadas por cores vivas e fortes; a preferência das meninas por bonecas e atividades que simulem tarefas domésticas e de “cuidado”, coloridas em tons de rosa. Enfim, uma série de características, conectadas em torno de ideais de masculinidade e feminilidade, nos descrevem.
Compreendida a construção da performance de gênero como uma herança criada socialmente, entende-se a impossibilidade de que uma informação genética (XX ou XY) seja responsável por determinar previamente comportamentos inerentes, assim, tudo o que existe despida essa construção são seres humanos, com características fisiologicamente distintas. É o que se abstrai da célebre frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher” de Simone de Beauvoir.

Ocorre que, as formações tanto da masculinidade quanto da feminilidade se baseiam em proibições, frases como “Você não deve se comportar dessa maneira, isso não é brincadeira de menino(a)”, são usadas para ambos (meninos e meninas) em situações distintas, o menino não deve agir como “mulherzinha” a menina deve ter “moral de moça”. Assim são criados dois polos: a masculinidade tóxica, e uma feminilidade doentia.
Deste modo, os incentivos começam a resultar em ações, e sinais de agressividade e violência são vistos como positivos e naturais ao comportamento do menino, sua sexualidade é estimulada desde muito cedo, tida como sinônimo de honra e virilidade, ao mesmo tempo em que sua fragilidade, sensibilidade são reprimidos (através de frases de uso comum: homem não chora) ocasionando, posteriormente, dificuldades afetivas.
Em contraste, a menina cresce e sua sexualidade é reprimida e tida como mancha e desonra. Os pais incentivam a brincar de casinha, ser vaidosa e “feminina”. Através da feminilidade se abstrai a ideia da donzela indefesa, comedida e discreta. A metáfora da gaiola dourada representa bem o que se entende por feminilidade, se passa por segura e confortável, enquanto aprisiona e controla a autenticidade e o protagonismo que pode ser experimentado distante dela, isto é, em liberdade.

OS PADRÕES DE BELEZA

Os padrões de beleza surgem no intuito de determinar, isto é, limitar o que se entende por belo, a fim de facilitar que através de comparações, as pessoas tenham uma concepção clara ao distinguir o belo do feio. Assim, conforme esses padrões se tornam cada vez mais complexos, mais pessoas são excluídas por eles.
Durante a última década as mulheres conquistaram posições importantes na sociedade, tanto em termos legais como profissionais. Paralelamente a essa escalada de poder, porém, aumentaram os distúrbios ligados à alimentação, as cirurgias plásticas, a pornografia e a necessidade artificialmente provocada de corresponder a um modelo idealizado de mulher, em que a velhice e a obesidade, mais do que pecados, são motivos para a estigmatização (NAOMI WOLF, O Mito da Beleza)

Diretamente atrelada ao culto do belo, surge também à padronização de corpos e características. Redes como Instagram e Snapchat (no exterior) são excelentes difusores de padrões de beleza. Em decorrência do acomunado uso de filtros nessas redes, no ano de 2018, uma onda de pedidos por cirurgias plásticas começou a preocupar os médicos americanos. Trata-se da “dismorfia do Snapchat”, na qual as pessoas estão pedindo para que fiquem iguais aos filtros dos aplicativos, o fenômeno é observado principalmente com jovens e acende alerta para transtornos corporais.

Além dos filtros, nos aplicativos ainda é comum se deparar com influencers difundindo procedimentos estéticos, de forma extremamente romantizada, omitindo os riscos e custos dos procedimentos. Levando aos consumidores deste conteúdo o entendimento de que encontraram a ”solução para os seus problemas”, de forma simples e acessível.
Desta forma, tais padrões vêm evoluindo, se tornando cada vez mais complexos, minuciosos e inatingíveis. Gerando nas mulheres questões seríssimas de autoestima, e insegurança, de modo que, quanto maior a insatisfação, mais lucrativas se tornam as indústrias de estética, beleza e cosméticos.

POR UM FEMINISMO QUE NÃO EXCLUA

É importantíssimo ressaltar que mesmo na opressão, pessoas foram e ainda são oprimidas de forma diferente, a título de exemplo, enquanto no século XIX as mulheres brancas lutavam pelo direito ao trabalho e ao voto, as mulheres negras trabalhavam forçadamente, na condição de escravas e dificilmente eram “mulheres” no sentido corrente do termo, uma vez que enquanto trabalhadoras não podiam ser tratadas como o “sexo frágil” ou “donas de casa”, assim, suas causas não eram abrangidas pela luta das mulheres brancas que quase nunca conseguiam compreender a complexidade da situação da mulher escrava.

Ainda hoje essa diferença prevalece, e somente é possível tratar de temas como “liberdade de escolha” e “discriminação”, tratando das restrições econômicas que tornam a liberdade e o empoderamento impossíveis para a ampla maioria das mulheres, somente é possível falar de feminismo, quando ele não exclui pessoas exploradas e oprimidas de sua luta, nesse sentido destaca-se o trecho do livro “feminismo para os 99%”:

(…) para as mulheres pobres e da classe trabalhadora, a igualdade salarial pode significar apenas igualdade na miséria, a menos que venha com empregos que paguem pisos salariais generosos, com direitos trabalhistas substanciais, que possam ser reivindicados, e com uma nova organização do trabalho doméstico e do trabalho de cuidado. Então, as leis que criminalizam a violência de gênero também são uma farsa cruel se fazem vista grossa ao sexismo e ao racismo estruturais dos sistemas de justiça criminal, deixando intactos a brutalidade policial, o encarceramento em massa, as ameaças de deportação, as intervenções militares, o assédio e o abuso nos locais de trabalho.

Por fim, o sistema patriarcal firma-se também, na atuação de mulheres que perpetuam a própria opressão, por vezes, por terem sido alienadas através de uma educação sexista ou em razão de já estarem em posições privilegiadas, de modo a somente almejarem o avanço individual, confundindo feminismo com ascensão de mulheres enquanto indivíduos. Nas palavras de Lola Aronovich:

O sistema patriarcal, só funciona com a cooperação das mulheres, adquirida por intermédio da doutrinação, privação, da educação, da negação das mulheres sobre sua história, da divisão das mulheres entre respeitáveis e não respeitáveis, da coerção, da discriminação no acesso a recursos econômicos e poder político, e da recompensa de privilégios de classe dada às mulheres que se conformam. As mulheres participam no processo de sua subordinação porque internalizam a ideia de sua inferioridade. Como apontou Simone de Beavoir: “o opressor não seria tão forte se não tivesse cumplices entre os próprios oprimidos”.

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